terça-feira, 3 de novembro de 2009

Aumentou o som aos poucos. À medida que Chet Baker invadia a sala com seus solos estrelares, ela sentia seu corpo ser levado de janela em janela por toda a vizinhança. Dançava porque, finalmente ,sentia-se de mãos dadas com o mundo, com Chet Baker e com a vitrola. Depois de tanto tempo, sentia-se segura para tirar os sapatos, tirar o vestido, esquecer da culpa e das unhas mal feitas. Misturava-se com o jazz à medida que seu corpo se misturava com a noite.
Não atendeu o telefone durante toda a noite e não voltaria a atender. No minuto em que Lucélia optou por si mesma, deixou pra trás os telefones, as identidades, as aspirinas e as dores de cabeça. Deixou na bolsa somente João Cabral e alguns trocados. Ela sabia, e dançava porque sabia. Sabia que naquela altura um homem girava na cama por ela. Sabia que em cada parede se desenhavam seus vestidos, e na memória de José se desenhavam seus sorrisos. Sentia uma estima maior por ela e pelo mundo. 
Naquela noite, dançou até ser ela mesma a noite, e evitou sentir-se mal pelas angústia que causava. Crescia a cada vez que José perguntava à lua por ela. Completava-se a cada poesia que ele não lhe entregaria. Depois de ter tido tanto medo do amor, Lucélia sentia-se finalmente segura para ser amada. No fundo, e no intervalo de cada música, dava-se conta de que nunca seria capaz de amá-lo, mas agora, como qualquer outra espécie de flor, estava pronta para ser olhada pelos olhos e pelos corações de José.
Quando o vinho terminou por misturar tudo,  o Jazz já corria pelas veias onde o sangue era destilado, e as radiolas brilhavam no céu com sua música incansável,  as estrelas grudavam-se no seu da boca e os desejos debaixo da cama, ela atirou-se no sofá, leve com uma vontade. Estava maior do que nunca. E como último pedaço daquela sua existência notura, assoprou:
- Calma, coração. A noite há de inventar um remédio para nos livrar de toda culpa, de toda saudade, de todo Domingo.
Há quem acredite que desse dia em diante, as vitrolas em forma de estrela tocam músicas invisíveis que embalam o dormir e o não-dormir de todas essas noites frias. Há quem acredite que desde então, quando uma mulher ama, a lua despenca em cada janela e leva dos amantes toda e qualquer possibilidade de sono. No fim, a Lua e as mulheres, feitas da mesma matéria, invadem cada quarto e cada parede para bordar seus nomes debaixo do travesseiro.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

- Eu já lhe disse mil vezes que mulheres, pra mim, são um desconcerto. Me acometem de um modo que eu não permito nem que doses de Cuba Libre o façam. Mas, afinal, vocês tem vontade própria. Por vocês e por nós. Pulando de bar em bar, de café em café, de madrugada em madrugada, eu me sentia cada vez mais vazio.Sabe como é ? Quem olhasse sem cuidado, podia dizer : "tempos de fartura". Mas, eu e os meus botões desabotoados, sabíamos que se tratava de tempos de pura falta. As pernas que se cruzavam e desprendiam nos cafés, as dançarinas que despiam-se da roupa e do peso, sempre me deixavam a sensação de que o drink estava acabando, entende ? Seria indelicado lhe contar os pormenores dessas noites, mas eu e você sabemos que elas não são o que há de mais correto no mundo.
Apagou o charuto, sorriu como um derrotado e continuou:
- Acontece que me apareceu um par de cachos numa madrugada dessas. E nessa hora, Matilde, na hora em que eu fico sem vontade de fumar charuto, é porque há algo que me desgoverna. São os melhores sintomas: começo parando de fumar, e em duas ou três semanas já nem me dou conta das saias curtas no meio da rua. O que é, se a gente vê bem, um grande prejuízo para os olhos.
- Você está preso nos cachos ?
- Ora, Matilde ! Você me pergunta como se não soubesse. Quem você pensa que eu sou ? O que há são dúvidas. Na primeira vez em que o vento balançou aqueles cachos na minha direção, eu fiz que não vi. Eu neguei. Mas não deu pra fazer isso por muito tempo. Funcionou no início, mas não por todo o tempo. Quem eu pensei que era ? Está provado que não é possível resistir a um tango que se dança com os olhos, com um cruzar de pernas, ou com um desatar de cabelos.
- Você a quer ?
- Trata-se de uma mulher, Matilde. Uma mulher não permite que você a queira.  Elas é que precisam desejar. Quem teima em desejar mulheres paga caro. E todos conhecemos bem o preço. Conhecemos quando conversamos com as estrelas do céu da cama, nas madrugadas permeadas por cada pergutna, quando gastamos paredes lembrando, quando fazemos versos de cada desimportância diária. É diabólico, Matilde... É diabólico.
- Se lhe preocupa é porque você já foi pego. Essa coisa de estar encantado foge ao nosso controle, doutor. A gente, sem mais nem menos, se pega sentado na sala conversando com a empregada sobre o assunto,sabe ? Mas isso é coisa boa, doutor. Eu não me preocuparia. Daqui a uns dias o senhor pode me pedir emprestado o lenço ou o ouvido. Mas o que é que a gente pode fazer na vida senão caminhar ? E quando a gente se encanta, doutor, a gente caminha com mais certeza. Certeza de não ter certeza. Aí tudo faz parecer música. A gente lava os pratos sem reclamar. A gente fuma o charuto com a própria alma. A gente conversa com a empregada, e com qualquer móvel da sala que se proponha a ouvir. Só pode ser coisa boa.
Mariano Gutiérrez esticou as pernas e as saudades sobre a escrivaninha. Olhou pela janela e deixou escapar:
- Quando eu me enrolo naqueles cachos, Matilde, eu sinto que, aos 72 anos, entendo muito menos as mulheres do que durante toda a minha vida. Mas cada vez que ela amarra os cabelos, eu tenho menos vontade de entender.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Você era a última música que eu escutava antes de dormir. Ou antes de não dormir. Nas noites em que eu passei acordada, ou levemente adormecida, eu tive a impressão de que era você quem colocava os sonhos nos lugares do sonhos, e passava pelas ruas fechando todas as cancelas do casaço. Você era o herói no mundo dos vilões. Vestia vermelho aos sábados, e não se vestia aos domingos. Sabe, Cássio? Dava a impressão de que a gente existia por livre e espontânea vontade.
Os nossos olhos se abriam juntos. O café da manhã já estava pronto mas não para nós. Todo o nosso alimento estava posto nos lençóis amassados, nas pernas misturadas, nas respirações descompassadas.  Uma coisa que me intrigava eram os seus sapatos. Você estava sempre de sapatos, Cássio. De algum modo eu sou capaz de entender, mas não de todos os modos. Você nunca tirou seus sapatos comigo, não é ? Eu estava nua. De corpo e de roupa. Quem me visse saberia cada milímetro do meu desespero, da minha angústia, do meu alívio e da minha calma. Mas você não tirava os sapatos.
No meu sonho, amor, você era tudo isso. Você colocava estrelas no céu da cama, e desejos no céu da boca. Acordar de manhã e , mais uma vez, não lhe encontrar ao meu lado, me fez ter vontade de ir embora. Essa saudade que eu estou prendendo na porta da geladeira, ou as calcinhas que vão ficar penduradas no varal, talvez te façam ter vontade de vir comigo. Mas, definitivamente, eu estou indo embora, Cássio. Se vier, arrume a cama. Não deixe para trás nenhum pedaço de você porque para onde estou indo, meu bem, o amor define tudo. Define até essa vontade que está me dando de deitar de novo na cama e esperar você voltar. Mas você voltará com os sapatos de sempre. E as gravatas. Acontece que eu já não caibo mais entre as suas meias. Nessa vida que eu escolhi pra mim, querido, só se anda descalço que é  pra não atrapalhar o samba.

sábado, 19 de setembro de 2009

Era a segunda vez nessa semana. Olhava pela janela e sentia medo do sol não estar lá.
- Que pode ser isso, doutor ? Algum tipo de distúrbio de desespero crônico ? Veja, junto com isso eu tenho tido uns sonhos estranhos. Eu lhe conto: eram umas quatro horas da tarde, e eu estava andando de bicicleta. Não era um passeio qualquer. Pela intesidade das pedaladas, pela fricção de angústia, pela forma como não fechava os olhos para o vento, era claro que eu tinha um destino. Eu cheguei a pensar, mas não quis ter certeza de que fosse ela o destino, doutor. Continuava pedalando como se enfretasse as rodas, a estrada, e cada vez mais como se enfrentasse a mim mesmo. Não podia ser ela. Eu já nem lembrava seu nome, seu telefone, já não tinha certeza do seu rosto. Não tinha porquê.
Interromepeu a fala para beber água, olhou para o chão como se quisesse se fixar à realidade, e continuou:
- Essas coisas da juventude são uma bobagem, doutor. O senhor que é jovem  vai me dar razão uma hora dessas. A gente sai vivendo como se tudo não passasse de um acaso, como se fosse tudo uma questão de tempo. Sabe do que mais, doutor ? A juventude é a melhor bobagem que nos acontece. E nesses últimos dias, com esses últimos sonhos, eu tenho retomado uma juventude da qual eu já não me lembrava bem. Mas não podia ser ela. Quando parei de andar de bicicleta, por que já estava demasiado cansado da paisagem, senti o meu corpo pesar como uma saudade. O resto do percurso eu fiz a pé. Encontrei um caminho pelo mar, e fui andando pela areia da praia com o pôr-do-sol me seguindo. Acredita que pude falar com ele ? Não chego a contar ao senhor por que o mesmo me pediu sigilo. Mas digo: o pôr-do-sol diz coisas que só se ouve dos braços de uma mulher. O senhor me entende não é ?
As pausas que fazia durante a fala, davam sempre a impressão de um cuidado para com a vida. Era como se lutasse bravamente a cada segundo para estar naquela sala. Uma luta silenciosa. Uma luta sem vencidos. Quando o relógio bateu às 17:30, continuou:
- Isso não é hora de estar em uma sala, doutor. A gente tem que se despedir do sol. Tem-se a impressão de que no dia seguinte ele volta, mas quem sabe ? Eu achei que ela voltaria. Nunca soube ler seu sorriso. Pra mim, ele sempre disse coisas muito maiores do que as que saíram de sua boca. Na verdade, nunca entendi cada centímetro daquela existência ondulada. Era como um livro sem os capítulos do final. Era sempre o meio. Era sempre a parte dos encontros. Sempre onde o amor acontece. O meio do livro não é onde o amor acaba, com um final feliz, nem é onde o amor começa com toda aquela emoção tão cansativa. O Meio do livro é onde o amor salta todas essas desimportâncias inciais, e esses desgates finais, pra simplesmente existir. Acontece, doutor, que a gente insiste em entender o livro. A gente insiste em não se despedir do sol. Nesse exato momento, ele está lá fora indo embora, e eu indo embora aqui dentro. No sonho, eu me sentia angustiado por não lembrar seu nome. Acabo de me lembrar: Roberta. Já não faz tanta diferença. O sol vai embora e é possível que volte amanhã. Ela, certamente, não voltará.
Respirou com toda a força que encontrou para dizer, quase sem precisar usar a boca:
Sabe, doutor eu já devia ter me acostumado com essas coisas. Isso de ter medo do sol ir embora só pode ser coisa de velho caduco. Esses sonhos sem pé nem cabeça são a saudade procurando o final do livro. Não vai achar, e nós dosi sabemos disso, não é doutor ? No fundo, a gente sabe que com literatura, mulheres e com o pôr-do-sol a certeza não se dá muito bem.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Decidiu que não precisava morrer. Não precisava morrer a cada gole de cachaça, a cada pingo de chuva, a cada noite sem madrugada. Decidiu e esticou as pernas para descansar. Teria uma eternidade inteira pela frente. No dia em que Gabriel decidiu pela sua imortalidade fazia 35º do lado de fora, e fez pôr-do-sol o dia todo.
Olhou ao redor e conseguiu ver uma alma a mais em cada coisa. Viu a mesa dançar, os televisores se atirarem pela janela, as enfermeiras dançarem tango, os pacientes contarem piadas, e viu a si próprio com grande espanto. Agora, que finalmente seria imortal, Gabriel sentia uma estima maior por si mesmo, como se  a alma de todas as coisas se misturassem com a sua, e como se fosse ele mesmo a dançar, contar piadas e atirar-se pela janela.
Enquanto tomava o seu último gole de água antes de tornar-se imortal, não pôde deixar de pensar no absurdo que era ensinar às nossas crianças que água não tem gosto. Agora, que teria uma vida toda pela frente, entraria em cada sala de aula e acabaria com os crimes cometidos às mentes infantis. Começaria rasgando os cadernos, derrubando as lousas, e trocaria os livros de matemática pelos de literatura. Porque, de fato, há muito menos geometria em livros de matemática do que nas poesias de Pablo Neruda.
Levantou-se, já sem esforço, para vestir uma camisa verde de botões, que sempre lhe dera a impressão de estar bem vestido. A ocasião pedia. Não é todo dia que se decide, e que se anuncia ao mundo, que se está tornando imortal. E naquele dia, Gabriel decidiu que não precisava morrer.
Fechou os olhos como se quisesse adiantar a sua entrada no futuro e não voltou a abrí-los. Os desatentos eram capazes de imaginar que ele tivesse morrido. Fizeram enterro, enfeitaram o quarto do hospital onde estivera nos seus últimos dias, onde bebeu seu último gole d'água, onde recitou seus últimos poemas, ficaram de luto, derramaram lágrimas por uma morte que nunca existiu. Talvez seus filhos, ou seus amigos mais próximos tenham se dado conta de que, ao contrário do que se estava a pensar, Gabriel estava mais vivo do que nunca. Estava vivo em cada música, em cada vestido de renda, em cada rede de pesca, em cada fogueira, em cada tango, cada novidade, em cada amor e cada desamor. Estava vivo em todos os lugares onde o corpo não chega e só uma alma, dessas que ninguém entende, alcança. Essa alma,  que corre na chuva, que se apaixona e se engana, que se encontra em cada café e se perde em cada esquina, que salta de porto em porto e aporta em cada mar, que se põe em todo final de tarde e se enche a cada lua minguante, essa alma, câncer nenhum mata.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

É como um sol que acabou de ser feito. No final das contas, foi você quem escolheu, Roberto. Escolheu preocupar-se, escolheu sentir-se mal,  sentir-se bem,sentir-se leve e pesado, escolheu todas as flores e incertezas, por que é isso que se está escolhendo quando a gente se deixa apaixonar. Por isso tem gente que não sonha. Não dá pra manter as coisas numa caixa, entende ? No início parece que está tudo sob controle, e quando você se dá conta, não consegue pensar em outra coisa, escrever sobre outra coisa, sorrir por outro motivo. Depois, fica tudo grande demais pra ser só seu, e vai te preenchendo ao todo.
Chame como você quiser. Posso estar errada. Talvez não seja uma paixão, mas tem os sintomas. Essa leveza com que fala dela, a vontade de ir ter com ela a cada pôr-do-sol, a cada nascer do sol, a cada existir do sol, não me ocorre chamar por outra definição. Mas você pode dizer pra você, se isso lhe conforta, que não passa de um encantamento. De mais um encantamento. Eu, meu filho, que já vivi, e me lembro, consigo ver que há algo mais aí. A gente não pode ter medo de pular na água. Na primeira vez em que andamos de barco, você não quis ir. Chorou, lutou, tive que conversar com você por duas horas até que,agarrado em meu pescoço, você embarcasse. Hoje, ninguém que eu conheça navega mais do que você. Seja com o olhar, com o espírito, ou com as palavras. Será assim com as paixões também. Não é a primeira, e há grandes chances de não ser a última. Eu ainda percebo a sua vontade de se agarrar ao meu pescoço, mas já não é preciso.
Você espera que eu lhe explique, mas eu também não sei. Espera que eu lhe diga o que fazer, mas eu não tenho como saber. Toda essa dúvida, essa noção de impossibilidade, essa angústia deliciosa, essa esperança bem vivida, só tem cheiro, cor, e jeito de paixonites. Pode ser que passe. Olhando pra você, meu filho, eu s consigo pensar que se nós temessemos ficar sozinhos, tanto quanto tememos nos apaixonar, cada partícula da nossa existência seria feita de amor.
Por enquanto, vá curtindo suas dúvidas e não se obrigue a ter certeza. Esse sol que nasce em você, com a matéria dos olhos dela, ainda vai sofrer muitas explosões cósmicas até se transformar em amor.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Ninguém se acostuma a essas sentimentalidades. Você saiu por aquela porta e me deixou com a boca seca. Faz uma semana que eu não assovio Jobim. Faz uma semana que eu tenho buzinado para as gentilezas no trânsito. Eu tenho tido pressa. Pressa de lhe esquecer.
Quando você entrou por aquela porta, a minha existência era seca. Você plantou em mim frases e versos que me fizeram acreditar nas cores. Agora, quando a minha boca vai secando junto com tudo mais que me rodeia, eu ainda sou capaz de ver a lua se atirar em minha janela. O meu amor não precisa de você. Eu é que preciso. Quando eu finalmente entendi os casamentos duradouros, entendi também as separações dolorosas.
Tudo o que você me disser agora vai parecer um bilhete na porta da geladeira. Vai parecer um telefonema distante, ou um presente mandado como pedido de desculpas. Você não me deve desculpas. Na minha alma, um tanto desbotada, sopra um vento frio que nem a saudade. Eu me cubro. Me cubro de esperanças pra saber que o nosso amor foi só um pedaço do bolo.E dentro em pouco, meu bem, eu já não estarei escrevendo sobre você no meu caderno, ou sentindo o seu vazio na minha mesa.
O Mesmo amor que arrancou você daqui, há de trazer novas embracações. Por hora, estou triste. Mas , de algum modo, sinto um desejo de me envolver de novo, e de lhe esquecer de novo, e de me vestir de verde novamente pra impressionar alguém. Quem será que virá me buscar dessa vez ? Quem irá novamente roubar meus suspiros, e quem me fará escrever freneticamente sobre bobagens vividas intensamente ? Agora, benzinho, eu tenho tanto desejo de viajar que o amor é meu ponto de partida.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Eu vou lhe dizer uma última coisa, Maurício: amores novos acontecem. Não adianta a gente se esconder por detrás do passado. A gente tem que cuidar do amor, senão ele engole a gente. Nos desenhos que eu fazia, havia eu e você. Não há mais, Maurício. E isso, meu caro, deixa o meu pincel à mercê de qualquer paixonite, de qualquer emoção rasante que me apareça, e que me provoque de novo aquelas dúvidas, aquela angústia, aquele medo infantil de me ferir tocando.De uma coisa, esteja certo: Eu vou completar o meu desenho. O buraco que você deixou na parede da minha existência será tapado, ainda que isso me custe um caminhão de tintas. Será que você me entende, Maurício ? Será que pensava nisso quando olhava para cada rabo de saia, para cada cabelo solto, para cada salto alto ?
No nosso aniversário de casamento, eu lembro, você disse que me amava. Eu lia nos encartes de CD as frases de amor, e achava que estavam falando sobre nós. Talvez eu tenha errado. Falavam somente sobre mim, não era mesmo ? Você insiste em dizer que me ama. Eu já não caibo nessas paredes. As paredes do nosso amor, foram sendo infiltradas pela saudade. A saudade de tudo o que não foi. Agora, Maurício, agora que você terá tempo livre para olhar para quantas garotas lhe apetecerem, eu vou ler todos os livros que falem de amor. Todos esses livros que eu deixei na estante por tanto tempo, por que acreditava que sabia o que era o amor. Todos sabemos, Maurício. E você, nesse seu jeito estúpido de me querer, também deve ter alguma razão.
Eu quero frio na barriga. Há um rapaz que volta e meia me manda um poema. Eu vou me deitar com ele. Vou me deitar com ele em todos os gramados e todos os lençois onde estiver bordado em letras garrafais a palavra Amor. Vou fugir com ele por todos os caminhos, por todas as estradas, e por todos os desvios, onde estiver uma placa indicando a direção do Amor. Eu não me importo em não conhecê-lo. Porque aos 72 anos, a única coisa que ainda me interessa conhecer é o Amor.
Salvador, Ainda Primavera de 1964.

sábado, 29 de agosto de 2009

Encontrara Cecília num livro de Gabriel Garcia. Imaginou seus olhos cor-de-lua, e sentiu-se anoitecido. Pensou no seu cabelo cor-de-mel, e sentiu-se adocicado. Quando o vento balançava os cabelos de Cecília, sabia-se encaracolado. Pregou no mural do seu pensamento frases e cores que diria para a moça, caso a encontrasse. Continuou procurando. Em cada página do livro,em cada livro.
Augusto estava errado. Os olhos da moça não eram cor-de-lua. Os olhos de Cecília tinham todas as cores do cinema. Mudavam de acordo com a estação do ano, com a fase da lua,de acordo com a cor do vestido, e combinavam com qualquer bolsa e qualquer sapato. O cabelo de Cecília, não era Encaracolado. Tinha o formato de qualquer ritmo, de modo que, ondulavam-se na Rumba, alisavam-se na valsa, encaracolavam-se no baião, e divertiam-se no samba.  Acontece que Augusto não ficaria sabendo de nada disso, não fossem pelas fotografias.
Quando viu pela primeira vez uma foto da moça, sentiu-se em preto e branco. Foi invadido por micro-flashs de emoções,e foi capturado por uma rede de foto-euforias. Na fotografia, Cecília era capaz de se movimentar, de ir e vir, de ser e de estar na imaginação do rapaz. Cecília teve mil e um amores, e mil e um amantes fotogênicos como ela, sem saber, nem de perto, que lá estava Augusto a ser capturado por cada click da sua máquina.
Diante das fotos da moça, era sempre meio dia no coração de Augusto.
Nunca souberam um do outro. Nunca se viram pessoalmente. A voz de Cecília, pousou nos pensamentos do rapaz por muitas e muitas tardes.
Dizem que impressionando-se, sem impressionar, fotografando-se por fotografias, e embralhando-se nas redes de sorrios e olhares fotográficos, Augusto inventou as primeiras moléculas de um amor à primeira vista.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Me apaixonei pelo seu "dar de ombros". Não foi preciso mais do que a nuca de Clarice pra que eu me apaixonasse. Lá estava ela, de costas, em preto e branco, numa fotografia cheia de tremores e efeitos, de beleza e de langor, de elegância e de mistérios. Me bastou saber seu nome, e seu livro favorito, para que também eu me tornasse, naquele momento, uma fotografia. Em branco e preto, tão paralisado quanto a dela, e sendo absorvido por toda aquela beleza, aqueles mistérios, passando a ser dono dos tremores e dos efeitos da minha própria fotografia.
Lá estávamos nós. Igualmente paralisados, igualmente atraídos por um universo de incertezas. As minhas caberiam num livro, que por sinal, estava derramado no colo de Clarice.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Tomou seu último gole de amores mal pensados nos olhos de Letícia. "Fui uma letra de tango, para tua indiferente melodia". Suspirou. Depois de sete ou doze decepções amorosas, João Antônio resolveu que ficaria sozinho. Não mais iria se deixar levar por qualquer brilho nos olhos, por algum balançar de cadeiras ou por perfumes sempre bem arranjados misturados ao desatar de cabelos ondulados, que ondulavam seu coração. Resistiria a isso. Nada mais de alegrias breves e decepções instantâneas obtidas a cada amor inventado, e a cada realidade adquirida.
Letícia havia sido a última. Conseguia se lembrar da primeira vez em que foi ondulado por seus cabelos, da primeira vez em que foi brilhado por seus olhos, e da primeira vez em que foi dançado por seu corpo. Os olhos, tão castanhos como os cabelos, tinham um existir tão fotográfico e uma intenção tão oculta, que João não foi capaz de resistir, assim como ninguém seria, às armadilhas de um encanto. As ondas que desciam do seu cabelo até um infinito qualquer no coração dos homens, embalaram por tantas e tantas noites, o escrever, o sonhar, o pensar, e o existir de João Antônio. Quando viu Letícia dançar pela primeira vez, tímida e distante, teve a certeza de que por mais uma vez havia se enganado.
Começava sempre desse jeito, e não acabava nunca. João conseguia sentir a não-presença de todos os seus amores contrariados. Eram como desenhos rabiscados na parede, que depois de séculos, ainda faziam sentido. Terminou de abotoar a camisa e saiu. Foi acampar seu corpo, onde sempre acampara seus amores. Num Jambeiro com seus cinquenta anos, que já havia presenciado a muito mais que cinquenta mil amores inacabados. Encostou a cabeça no tronco da árvore e esticou as pernas para constatar que já não eram tão pequenas.
Quem conhecia João podia imaginar que era um vício, isso de inventar histórias, amores, e histórias de amor. E sabiam que ele o fazia como ninguém. Com Cecília, com Gisele, Com Mercedes, e todos não passavam de casos e mais casos que já seria suficientes para integrar uma biblioteca. Mas João, e somente ele, sabia que todo aquele ir e vir amoroso, não passava de uma paixão inexplicável pelo desejo, e um desejo inexplicável de sentir paixão.
Mas esse não era mais o mesmo João. A partir de então, degustaria cada centímetro de sua solidão vivida, e aproveitaria para se gabar de que não mais sofreria de amor. Tiraria de si todas as roupas internas que havia tricotado com tanto cuidado, durante todos esses anos, e andaria nú. Nú de amores. Levantou-se e começou a sua caminhada rumo à solidão, de peito aberto e disposto a evitar o amor de todas as formas. E teria conseguido, não fosse pora aquele bailar de coxas de Maria.
Algumas tribos indígenas acreditavam que o homem só se fez homem por que os deuses nos ofertaram a graça da dúvida. Crendo nisso, sabiam que o mundo só pôde ter as cores que tem hoje, quando os deuses nos ofertaram a graça das mulheres, que são, de longe, a nosso mistério favorito.

sábado, 23 de maio de 2009

"Percorreu cada centímetro da caneca azul com a foto de uma bailarina. Por um momento pensou estar entrando na caneca, no outro, pensou ser a bailarina. Ouviu a chuva com uma atenção inédita, como quem procurasse sair de si. Não sairia. E no fundo, mesmo com todo aquele frio no peito, e aquela dor na garganta, sabia que não sairia.
Viu passar um gato e só pode achar graça. Achou que podia se transformar num gato. Não pôde. Não sairia, e tampouco se transformaria num gato. Desceus as escadas do prédio como quem receberia uma encomenda, simplesmente imaginando que o frio e a dor, lhe escapariam se fosse capaz de correr à velocidade da paz. Não correu. Não sairia, não seria um gato, e havia falhado em correr tão rápido.
A última opção lhe pareceu mais absurda, mas era a última. Sentou-se. Tapou os olhos, fechou os ouvidos, e não quis ser mais nada. Teria que ir ele mesmo, dentro daquela escuridão toráxica, colocar as coias no seu devido lugar. E começou a arrumação: amores, no lugar de amores, saudades no lugar das saudades, tristezas para serem recicladas. E a faxina durou para o resto da vida. Há quem diga, que Heitor Mariano Castro, nunca regressou da sua arrumação interna. Diz-se pelos quatro cantos que daquele dia em diante, virou um limpador de si , e vive sempre lá dentro, numa solidão acompanhada e bem vivida, e organizada. Quando se conversa com Heitor, tem-se a clara impressão de que ele está encontrado em algum lugar de si mesmo."

sexta-feira, 27 de março de 2009

E então, Clariça, você sabe ? Pra mim, muito pouca. E eu entendo você. Você e mais da metade das pessoas que eu não conheço, foram se deixando ir, foram sem se perguntarem o motivo. Mas, se você quer saber Clariça, para mim, a diferença entre nós e as abelhas é que a nossa culpa é maior. Elas não sabem o que estão fazendo. E nós, será que sabemos ?
Outro dia desses, eu me vi pensando, agora, depois de aposentado, que eu não queria ser médico. Mas você lembra o que você me disse na época ? Acho que não. Disse e repetiu tantas outras vezes, como tantas outras pessoas, sem nunca terem pensado, de que é que vale essa coisa toda de vida, se a gente só precisar se preocupar em sobreviver.
Sabe do que mais? Eu fui um homem feliz. Digo, eu fui feliz como me pediram que fosse. Eu fui feliz quando me formei, e não queria me formar. Eu fui feliz quando me casei e tive dois filhos, quando queria ter cinco. E agora eu me pergunto para onde estão indo essas pessoas. Aonde nós dois viemos parar.
As abelhas não escolhem serem operárias pro resto da vida. Mas eu escolhi ser médico. E demorei setenta anos para ser capaz de admitir que eu me arrependo. Não dá mais tempo. Mas dá tempo de dizer a eles, Clariça. Eles que vão passando na rua com esse desleixo para com a vida. Eles que vão sem dar valor, às decadas que passarão. Eles que se obrigam a viver como alguém um dia achou ideal. Entende, Clariça ? Será que sempre será preciso chegar aos noventa, para enxergar que não vale a pena insistir.
Você não me entende, não é ? Nem agora, nem naquele tempo. Mas eu juro a você que eu farei exatamente o que deveria ter feito desde 20 anos. Vou sentar nessa cadeira, e começar a escrever contos.