terça-feira, 15 de setembro de 2009

Decidiu que não precisava morrer. Não precisava morrer a cada gole de cachaça, a cada pingo de chuva, a cada noite sem madrugada. Decidiu e esticou as pernas para descansar. Teria uma eternidade inteira pela frente. No dia em que Gabriel decidiu pela sua imortalidade fazia 35º do lado de fora, e fez pôr-do-sol o dia todo.
Olhou ao redor e conseguiu ver uma alma a mais em cada coisa. Viu a mesa dançar, os televisores se atirarem pela janela, as enfermeiras dançarem tango, os pacientes contarem piadas, e viu a si próprio com grande espanto. Agora, que finalmente seria imortal, Gabriel sentia uma estima maior por si mesmo, como se  a alma de todas as coisas se misturassem com a sua, e como se fosse ele mesmo a dançar, contar piadas e atirar-se pela janela.
Enquanto tomava o seu último gole de água antes de tornar-se imortal, não pôde deixar de pensar no absurdo que era ensinar às nossas crianças que água não tem gosto. Agora, que teria uma vida toda pela frente, entraria em cada sala de aula e acabaria com os crimes cometidos às mentes infantis. Começaria rasgando os cadernos, derrubando as lousas, e trocaria os livros de matemática pelos de literatura. Porque, de fato, há muito menos geometria em livros de matemática do que nas poesias de Pablo Neruda.
Levantou-se, já sem esforço, para vestir uma camisa verde de botões, que sempre lhe dera a impressão de estar bem vestido. A ocasião pedia. Não é todo dia que se decide, e que se anuncia ao mundo, que se está tornando imortal. E naquele dia, Gabriel decidiu que não precisava morrer.
Fechou os olhos como se quisesse adiantar a sua entrada no futuro e não voltou a abrí-los. Os desatentos eram capazes de imaginar que ele tivesse morrido. Fizeram enterro, enfeitaram o quarto do hospital onde estivera nos seus últimos dias, onde bebeu seu último gole d'água, onde recitou seus últimos poemas, ficaram de luto, derramaram lágrimas por uma morte que nunca existiu. Talvez seus filhos, ou seus amigos mais próximos tenham se dado conta de que, ao contrário do que se estava a pensar, Gabriel estava mais vivo do que nunca. Estava vivo em cada música, em cada vestido de renda, em cada rede de pesca, em cada fogueira, em cada tango, cada novidade, em cada amor e cada desamor. Estava vivo em todos os lugares onde o corpo não chega e só uma alma, dessas que ninguém entende, alcança. Essa alma,  que corre na chuva, que se apaixona e se engana, que se encontra em cada café e se perde em cada esquina, que salta de porto em porto e aporta em cada mar, que se põe em todo final de tarde e se enche a cada lua minguante, essa alma, câncer nenhum mata.

3 comentários:

Isadora Sodré disse...

é o meu favorito a partir de agora
(:

maria e as baleias disse...

:O
amei, principalmente a parte do tangos e dos televisores.

brotou em mim uma dezena e meia de comentários sobre os quais eu adoraria dissetar depois. adoro esse tipo de coisa.

Do outro lado disse...

Duas das opiniões que mais me dão vontade de atirar televisores pela janela.

:)

Obrigado.