quinta-feira, 16 de julho de 2009

Me apaixonei pelo seu "dar de ombros". Não foi preciso mais do que a nuca de Clarice pra que eu me apaixonasse. Lá estava ela, de costas, em preto e branco, numa fotografia cheia de tremores e efeitos, de beleza e de langor, de elegância e de mistérios. Me bastou saber seu nome, e seu livro favorito, para que também eu me tornasse, naquele momento, uma fotografia. Em branco e preto, tão paralisado quanto a dela, e sendo absorvido por toda aquela beleza, aqueles mistérios, passando a ser dono dos tremores e dos efeitos da minha própria fotografia.
Lá estávamos nós. Igualmente paralisados, igualmente atraídos por um universo de incertezas. As minhas caberiam num livro, que por sinal, estava derramado no colo de Clarice.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Tomou seu último gole de amores mal pensados nos olhos de Letícia. "Fui uma letra de tango, para tua indiferente melodia". Suspirou. Depois de sete ou doze decepções amorosas, João Antônio resolveu que ficaria sozinho. Não mais iria se deixar levar por qualquer brilho nos olhos, por algum balançar de cadeiras ou por perfumes sempre bem arranjados misturados ao desatar de cabelos ondulados, que ondulavam seu coração. Resistiria a isso. Nada mais de alegrias breves e decepções instantâneas obtidas a cada amor inventado, e a cada realidade adquirida.
Letícia havia sido a última. Conseguia se lembrar da primeira vez em que foi ondulado por seus cabelos, da primeira vez em que foi brilhado por seus olhos, e da primeira vez em que foi dançado por seu corpo. Os olhos, tão castanhos como os cabelos, tinham um existir tão fotográfico e uma intenção tão oculta, que João não foi capaz de resistir, assim como ninguém seria, às armadilhas de um encanto. As ondas que desciam do seu cabelo até um infinito qualquer no coração dos homens, embalaram por tantas e tantas noites, o escrever, o sonhar, o pensar, e o existir de João Antônio. Quando viu Letícia dançar pela primeira vez, tímida e distante, teve a certeza de que por mais uma vez havia se enganado.
Começava sempre desse jeito, e não acabava nunca. João conseguia sentir a não-presença de todos os seus amores contrariados. Eram como desenhos rabiscados na parede, que depois de séculos, ainda faziam sentido. Terminou de abotoar a camisa e saiu. Foi acampar seu corpo, onde sempre acampara seus amores. Num Jambeiro com seus cinquenta anos, que já havia presenciado a muito mais que cinquenta mil amores inacabados. Encostou a cabeça no tronco da árvore e esticou as pernas para constatar que já não eram tão pequenas.
Quem conhecia João podia imaginar que era um vício, isso de inventar histórias, amores, e histórias de amor. E sabiam que ele o fazia como ninguém. Com Cecília, com Gisele, Com Mercedes, e todos não passavam de casos e mais casos que já seria suficientes para integrar uma biblioteca. Mas João, e somente ele, sabia que todo aquele ir e vir amoroso, não passava de uma paixão inexplicável pelo desejo, e um desejo inexplicável de sentir paixão.
Mas esse não era mais o mesmo João. A partir de então, degustaria cada centímetro de sua solidão vivida, e aproveitaria para se gabar de que não mais sofreria de amor. Tiraria de si todas as roupas internas que havia tricotado com tanto cuidado, durante todos esses anos, e andaria nú. Nú de amores. Levantou-se e começou a sua caminhada rumo à solidão, de peito aberto e disposto a evitar o amor de todas as formas. E teria conseguido, não fosse pora aquele bailar de coxas de Maria.
Algumas tribos indígenas acreditavam que o homem só se fez homem por que os deuses nos ofertaram a graça da dúvida. Crendo nisso, sabiam que o mundo só pôde ter as cores que tem hoje, quando os deuses nos ofertaram a graça das mulheres, que são, de longe, a nosso mistério favorito.