sexta-feira, 27 de março de 2009

E então, Clariça, você sabe ? Pra mim, muito pouca. E eu entendo você. Você e mais da metade das pessoas que eu não conheço, foram se deixando ir, foram sem se perguntarem o motivo. Mas, se você quer saber Clariça, para mim, a diferença entre nós e as abelhas é que a nossa culpa é maior. Elas não sabem o que estão fazendo. E nós, será que sabemos ?
Outro dia desses, eu me vi pensando, agora, depois de aposentado, que eu não queria ser médico. Mas você lembra o que você me disse na época ? Acho que não. Disse e repetiu tantas outras vezes, como tantas outras pessoas, sem nunca terem pensado, de que é que vale essa coisa toda de vida, se a gente só precisar se preocupar em sobreviver.
Sabe do que mais? Eu fui um homem feliz. Digo, eu fui feliz como me pediram que fosse. Eu fui feliz quando me formei, e não queria me formar. Eu fui feliz quando me casei e tive dois filhos, quando queria ter cinco. E agora eu me pergunto para onde estão indo essas pessoas. Aonde nós dois viemos parar.
As abelhas não escolhem serem operárias pro resto da vida. Mas eu escolhi ser médico. E demorei setenta anos para ser capaz de admitir que eu me arrependo. Não dá mais tempo. Mas dá tempo de dizer a eles, Clariça. Eles que vão passando na rua com esse desleixo para com a vida. Eles que vão sem dar valor, às decadas que passarão. Eles que se obrigam a viver como alguém um dia achou ideal. Entende, Clariça ? Será que sempre será preciso chegar aos noventa, para enxergar que não vale a pena insistir.
Você não me entende, não é ? Nem agora, nem naquele tempo. Mas eu juro a você que eu farei exatamente o que deveria ter feito desde 20 anos. Vou sentar nessa cadeira, e começar a escrever contos.