sábado, 23 de maio de 2009

"Percorreu cada centímetro da caneca azul com a foto de uma bailarina. Por um momento pensou estar entrando na caneca, no outro, pensou ser a bailarina. Ouviu a chuva com uma atenção inédita, como quem procurasse sair de si. Não sairia. E no fundo, mesmo com todo aquele frio no peito, e aquela dor na garganta, sabia que não sairia.
Viu passar um gato e só pode achar graça. Achou que podia se transformar num gato. Não pôde. Não sairia, e tampouco se transformaria num gato. Desceus as escadas do prédio como quem receberia uma encomenda, simplesmente imaginando que o frio e a dor, lhe escapariam se fosse capaz de correr à velocidade da paz. Não correu. Não sairia, não seria um gato, e havia falhado em correr tão rápido.
A última opção lhe pareceu mais absurda, mas era a última. Sentou-se. Tapou os olhos, fechou os ouvidos, e não quis ser mais nada. Teria que ir ele mesmo, dentro daquela escuridão toráxica, colocar as coias no seu devido lugar. E começou a arrumação: amores, no lugar de amores, saudades no lugar das saudades, tristezas para serem recicladas. E a faxina durou para o resto da vida. Há quem diga, que Heitor Mariano Castro, nunca regressou da sua arrumação interna. Diz-se pelos quatro cantos que daquele dia em diante, virou um limpador de si , e vive sempre lá dentro, numa solidão acompanhada e bem vivida, e organizada. Quando se conversa com Heitor, tem-se a clara impressão de que ele está encontrado em algum lugar de si mesmo."