terça-feira, 3 de novembro de 2009

Aumentou o som aos poucos. À medida que Chet Baker invadia a sala com seus solos estrelares, ela sentia seu corpo ser levado de janela em janela por toda a vizinhança. Dançava porque, finalmente ,sentia-se de mãos dadas com o mundo, com Chet Baker e com a vitrola. Depois de tanto tempo, sentia-se segura para tirar os sapatos, tirar o vestido, esquecer da culpa e das unhas mal feitas. Misturava-se com o jazz à medida que seu corpo se misturava com a noite.
Não atendeu o telefone durante toda a noite e não voltaria a atender. No minuto em que Lucélia optou por si mesma, deixou pra trás os telefones, as identidades, as aspirinas e as dores de cabeça. Deixou na bolsa somente João Cabral e alguns trocados. Ela sabia, e dançava porque sabia. Sabia que naquela altura um homem girava na cama por ela. Sabia que em cada parede se desenhavam seus vestidos, e na memória de José se desenhavam seus sorrisos. Sentia uma estima maior por ela e pelo mundo. 
Naquela noite, dançou até ser ela mesma a noite, e evitou sentir-se mal pelas angústia que causava. Crescia a cada vez que José perguntava à lua por ela. Completava-se a cada poesia que ele não lhe entregaria. Depois de ter tido tanto medo do amor, Lucélia sentia-se finalmente segura para ser amada. No fundo, e no intervalo de cada música, dava-se conta de que nunca seria capaz de amá-lo, mas agora, como qualquer outra espécie de flor, estava pronta para ser olhada pelos olhos e pelos corações de José.
Quando o vinho terminou por misturar tudo,  o Jazz já corria pelas veias onde o sangue era destilado, e as radiolas brilhavam no céu com sua música incansável,  as estrelas grudavam-se no seu da boca e os desejos debaixo da cama, ela atirou-se no sofá, leve com uma vontade. Estava maior do que nunca. E como último pedaço daquela sua existência notura, assoprou:
- Calma, coração. A noite há de inventar um remédio para nos livrar de toda culpa, de toda saudade, de todo Domingo.
Há quem acredite que desse dia em diante, as vitrolas em forma de estrela tocam músicas invisíveis que embalam o dormir e o não-dormir de todas essas noites frias. Há quem acredite que desde então, quando uma mulher ama, a lua despenca em cada janela e leva dos amantes toda e qualquer possibilidade de sono. No fim, a Lua e as mulheres, feitas da mesma matéria, invadem cada quarto e cada parede para bordar seus nomes debaixo do travesseiro.