quinta-feira, 8 de julho de 2010

O estádio assistiu de olhos vidrados. Quando Augusto Pereira arrancou pela ponta esquerda, invadiu a área deixando dois zagueiros estáticos no caminho e enfiou o pé na bola com toda convicção que pôde, não houve ali quem não prendesse a respiração por dez ou quinze segundos. Geraldo não viu. Viu, aliás, que quando a bola explodiu na trave e os xingamentos se misturaram aos semblantes resignados, ela sorriu. Tinha uma Cannon 1959 nas mãos, e uns olhos com mais 1959 cores no rosto. Naquela quarta-feira, às vésperas das festas de independência, o jogo de Geraldo, persistente torcedor, se encerrou pouco depois do intervalo, de modo que nunca procurou saber do resultado depois da primeira etapa.
Eram cinco minutos do segundo tempo,  Pereira estava com a bola no ataque, quando seu olho esbarrou naquele colete amarelo, irresistivelmente atirado sobre o vestido azul-florido. Não pôde pensar em outra coisa. Não viu o gol contra de Pérez, tampouco se deu conta de que o juiz, tão distraído quanto ele próprio, não assinalara o pênalti sobre Tavárez. Mas viu muito bem que os papéis picados em azul e branco que despencavam dos setores mais altos da arquibancada, davam à dona do vestido um tom celestial.
Às vezes convém esperar. Se soubesse como, Geraldo teria saído da sua fileira 8 B, religiosamente escolhida, para ir ver mais de perto a fotógrafa. Inútil. Não soube  o que fazer. No mais, ele sabia. Sabia que em dias de jogos mais temperados, era importante munir-se das bebidas e comidas antes mesmo do apito inicial. Em dias de vitória certa, a grande questão era não perder os gols bonitos, o resto não tinha problema. Em jogos onde a derrota despontava como uma certeza dolorida, o Bar Santiago, local de se entornar mágoas, era suficiente. Sabia que naquela noite, como em todas as outras, sendo indiferente o resultado, pouco depois do fim da partida os cafés e os seus cinzeiros estariam todos lotados. Mas não sabia o que dizer à moça.
Quando o Juiz encerrou a partida nos gramados, Geraldo começou a sua na arquibancada. Avançou pela fileira B driblando todos os ambulantes que por ali se aglomeravam. Sem que pudesse ser detido, alcançou o nível A , já bem mais próximo da ala dos jornalistas, e ignorou os gritos e puxões de camisa que levou dos amigos ao longo do percurso. Como Diego Armando faria com muita perfeição anos mais tarde, teria driblado o mundo para estar ali diante daqueles cabelos mais ruivos do que loiros, mais lisos do que enrolados, mais dos seus olhos, do que dos dela. Porque se demorasse um pouco mais teria desistido, tratou de abordá-la com uma decisão que não voltou a exercitar em sua vida.
- Vamos ao Santiago ?
Logo depois de ter feito a pergunta, passaram pela sua cabeça as duas mil formas que ela arrumaria para dizer não. Achou por bem atenuar:
- É só um convite bem intencionado.
Quando a moça sorriu, talvez do seu penteado mal arranjado, talvez do convite feito com muito poucos modos, talvez do cuidado que se obrigava a ter para com as palavras, Geraldo sentiu por dentro os papeis picados se atirarem por todo lado, anunciando, senão um carnaval, um novo encanto. 
Foram por três vezes ao Santiago e mais uma ao Cervantes. As conversas que se arrastavam pelas noites, os olhares trocados, as mãos que se encontravam, envolviam cada vez mais o rapaz numa dessas molduras em mosaico que denunciam sentimentos loucos. Pelas noites que se arrastavam por semanas no pensamento dele, falavam sobre fotografia, poemas, romances, futebol, poemas- romances,  mosaicos e convites bem intencionados.
Acabava sempre abruptamente. Com ela, não havia acréscimos. Sem mais, decidia ir-se embora e deixava Geraldo a roer as unhas, a balançar as pernas, a assoviar melodias de final de tarde. Desaparecia sempre como o letreiro que se apaga no final da partida, sem deixar pistas, sem mandar lembranças. 
Não foram mais que duas semanas entre o primeiro café e o último. Mas Geraldo, acostumado aos 45 minutos do jogo onde estão guardados todos os corações e olhares atentos do mundo, sabia que o tempo dos relógio são uma mentira. Em seu coração , a vida estava medida não em segundos, mas em dribles de Diego Armando, em grandes defesas de Román, em grandes carnavais e papéis picados do amor.
Por entender que a moça não queria ser procurada, deixou de ir aos estádios. É preciso saber a hora de parar. Pendurou as chuteiras daquele encanto, no ano em que seu clube, depois de um longo tempo venceu o campeonato. Vendo da janela, Geraldo foi sendo tomado por toda aquela alegria, os gritos, as músicas, os hinos, as faixas de campeão, a euforia.
Num final de tarde da mesma semana, sob o céu recortado por bandeirolas e sentindo o coração feito um mosaico, foi capaz de entender: as paixões, essas invencíveis, são o lance mais lindo do mundo.