sábado, 19 de setembro de 2009

Era a segunda vez nessa semana. Olhava pela janela e sentia medo do sol não estar lá.
- Que pode ser isso, doutor ? Algum tipo de distúrbio de desespero crônico ? Veja, junto com isso eu tenho tido uns sonhos estranhos. Eu lhe conto: eram umas quatro horas da tarde, e eu estava andando de bicicleta. Não era um passeio qualquer. Pela intesidade das pedaladas, pela fricção de angústia, pela forma como não fechava os olhos para o vento, era claro que eu tinha um destino. Eu cheguei a pensar, mas não quis ter certeza de que fosse ela o destino, doutor. Continuava pedalando como se enfretasse as rodas, a estrada, e cada vez mais como se enfrentasse a mim mesmo. Não podia ser ela. Eu já nem lembrava seu nome, seu telefone, já não tinha certeza do seu rosto. Não tinha porquê.
Interromepeu a fala para beber água, olhou para o chão como se quisesse se fixar à realidade, e continuou:
- Essas coisas da juventude são uma bobagem, doutor. O senhor que é jovem  vai me dar razão uma hora dessas. A gente sai vivendo como se tudo não passasse de um acaso, como se fosse tudo uma questão de tempo. Sabe do que mais, doutor ? A juventude é a melhor bobagem que nos acontece. E nesses últimos dias, com esses últimos sonhos, eu tenho retomado uma juventude da qual eu já não me lembrava bem. Mas não podia ser ela. Quando parei de andar de bicicleta, por que já estava demasiado cansado da paisagem, senti o meu corpo pesar como uma saudade. O resto do percurso eu fiz a pé. Encontrei um caminho pelo mar, e fui andando pela areia da praia com o pôr-do-sol me seguindo. Acredita que pude falar com ele ? Não chego a contar ao senhor por que o mesmo me pediu sigilo. Mas digo: o pôr-do-sol diz coisas que só se ouve dos braços de uma mulher. O senhor me entende não é ?
As pausas que fazia durante a fala, davam sempre a impressão de um cuidado para com a vida. Era como se lutasse bravamente a cada segundo para estar naquela sala. Uma luta silenciosa. Uma luta sem vencidos. Quando o relógio bateu às 17:30, continuou:
- Isso não é hora de estar em uma sala, doutor. A gente tem que se despedir do sol. Tem-se a impressão de que no dia seguinte ele volta, mas quem sabe ? Eu achei que ela voltaria. Nunca soube ler seu sorriso. Pra mim, ele sempre disse coisas muito maiores do que as que saíram de sua boca. Na verdade, nunca entendi cada centímetro daquela existência ondulada. Era como um livro sem os capítulos do final. Era sempre o meio. Era sempre a parte dos encontros. Sempre onde o amor acontece. O meio do livro não é onde o amor acaba, com um final feliz, nem é onde o amor começa com toda aquela emoção tão cansativa. O Meio do livro é onde o amor salta todas essas desimportâncias inciais, e esses desgates finais, pra simplesmente existir. Acontece, doutor, que a gente insiste em entender o livro. A gente insiste em não se despedir do sol. Nesse exato momento, ele está lá fora indo embora, e eu indo embora aqui dentro. No sonho, eu me sentia angustiado por não lembrar seu nome. Acabo de me lembrar: Roberta. Já não faz tanta diferença. O sol vai embora e é possível que volte amanhã. Ela, certamente, não voltará.
Respirou com toda a força que encontrou para dizer, quase sem precisar usar a boca:
Sabe, doutor eu já devia ter me acostumado com essas coisas. Isso de ter medo do sol ir embora só pode ser coisa de velho caduco. Esses sonhos sem pé nem cabeça são a saudade procurando o final do livro. Não vai achar, e nós dosi sabemos disso, não é doutor ? No fundo, a gente sabe que com literatura, mulheres e com o pôr-do-sol a certeza não se dá muito bem.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Decidiu que não precisava morrer. Não precisava morrer a cada gole de cachaça, a cada pingo de chuva, a cada noite sem madrugada. Decidiu e esticou as pernas para descansar. Teria uma eternidade inteira pela frente. No dia em que Gabriel decidiu pela sua imortalidade fazia 35º do lado de fora, e fez pôr-do-sol o dia todo.
Olhou ao redor e conseguiu ver uma alma a mais em cada coisa. Viu a mesa dançar, os televisores se atirarem pela janela, as enfermeiras dançarem tango, os pacientes contarem piadas, e viu a si próprio com grande espanto. Agora, que finalmente seria imortal, Gabriel sentia uma estima maior por si mesmo, como se  a alma de todas as coisas se misturassem com a sua, e como se fosse ele mesmo a dançar, contar piadas e atirar-se pela janela.
Enquanto tomava o seu último gole de água antes de tornar-se imortal, não pôde deixar de pensar no absurdo que era ensinar às nossas crianças que água não tem gosto. Agora, que teria uma vida toda pela frente, entraria em cada sala de aula e acabaria com os crimes cometidos às mentes infantis. Começaria rasgando os cadernos, derrubando as lousas, e trocaria os livros de matemática pelos de literatura. Porque, de fato, há muito menos geometria em livros de matemática do que nas poesias de Pablo Neruda.
Levantou-se, já sem esforço, para vestir uma camisa verde de botões, que sempre lhe dera a impressão de estar bem vestido. A ocasião pedia. Não é todo dia que se decide, e que se anuncia ao mundo, que se está tornando imortal. E naquele dia, Gabriel decidiu que não precisava morrer.
Fechou os olhos como se quisesse adiantar a sua entrada no futuro e não voltou a abrí-los. Os desatentos eram capazes de imaginar que ele tivesse morrido. Fizeram enterro, enfeitaram o quarto do hospital onde estivera nos seus últimos dias, onde bebeu seu último gole d'água, onde recitou seus últimos poemas, ficaram de luto, derramaram lágrimas por uma morte que nunca existiu. Talvez seus filhos, ou seus amigos mais próximos tenham se dado conta de que, ao contrário do que se estava a pensar, Gabriel estava mais vivo do que nunca. Estava vivo em cada música, em cada vestido de renda, em cada rede de pesca, em cada fogueira, em cada tango, cada novidade, em cada amor e cada desamor. Estava vivo em todos os lugares onde o corpo não chega e só uma alma, dessas que ninguém entende, alcança. Essa alma,  que corre na chuva, que se apaixona e se engana, que se encontra em cada café e se perde em cada esquina, que salta de porto em porto e aporta em cada mar, que se põe em todo final de tarde e se enche a cada lua minguante, essa alma, câncer nenhum mata.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

É como um sol que acabou de ser feito. No final das contas, foi você quem escolheu, Roberto. Escolheu preocupar-se, escolheu sentir-se mal,  sentir-se bem,sentir-se leve e pesado, escolheu todas as flores e incertezas, por que é isso que se está escolhendo quando a gente se deixa apaixonar. Por isso tem gente que não sonha. Não dá pra manter as coisas numa caixa, entende ? No início parece que está tudo sob controle, e quando você se dá conta, não consegue pensar em outra coisa, escrever sobre outra coisa, sorrir por outro motivo. Depois, fica tudo grande demais pra ser só seu, e vai te preenchendo ao todo.
Chame como você quiser. Posso estar errada. Talvez não seja uma paixão, mas tem os sintomas. Essa leveza com que fala dela, a vontade de ir ter com ela a cada pôr-do-sol, a cada nascer do sol, a cada existir do sol, não me ocorre chamar por outra definição. Mas você pode dizer pra você, se isso lhe conforta, que não passa de um encantamento. De mais um encantamento. Eu, meu filho, que já vivi, e me lembro, consigo ver que há algo mais aí. A gente não pode ter medo de pular na água. Na primeira vez em que andamos de barco, você não quis ir. Chorou, lutou, tive que conversar com você por duas horas até que,agarrado em meu pescoço, você embarcasse. Hoje, ninguém que eu conheça navega mais do que você. Seja com o olhar, com o espírito, ou com as palavras. Será assim com as paixões também. Não é a primeira, e há grandes chances de não ser a última. Eu ainda percebo a sua vontade de se agarrar ao meu pescoço, mas já não é preciso.
Você espera que eu lhe explique, mas eu também não sei. Espera que eu lhe diga o que fazer, mas eu não tenho como saber. Toda essa dúvida, essa noção de impossibilidade, essa angústia deliciosa, essa esperança bem vivida, só tem cheiro, cor, e jeito de paixonites. Pode ser que passe. Olhando pra você, meu filho, eu s consigo pensar que se nós temessemos ficar sozinhos, tanto quanto tememos nos apaixonar, cada partícula da nossa existência seria feita de amor.
Por enquanto, vá curtindo suas dúvidas e não se obrigue a ter certeza. Esse sol que nasce em você, com a matéria dos olhos dela, ainda vai sofrer muitas explosões cósmicas até se transformar em amor.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Ninguém se acostuma a essas sentimentalidades. Você saiu por aquela porta e me deixou com a boca seca. Faz uma semana que eu não assovio Jobim. Faz uma semana que eu tenho buzinado para as gentilezas no trânsito. Eu tenho tido pressa. Pressa de lhe esquecer.
Quando você entrou por aquela porta, a minha existência era seca. Você plantou em mim frases e versos que me fizeram acreditar nas cores. Agora, quando a minha boca vai secando junto com tudo mais que me rodeia, eu ainda sou capaz de ver a lua se atirar em minha janela. O meu amor não precisa de você. Eu é que preciso. Quando eu finalmente entendi os casamentos duradouros, entendi também as separações dolorosas.
Tudo o que você me disser agora vai parecer um bilhete na porta da geladeira. Vai parecer um telefonema distante, ou um presente mandado como pedido de desculpas. Você não me deve desculpas. Na minha alma, um tanto desbotada, sopra um vento frio que nem a saudade. Eu me cubro. Me cubro de esperanças pra saber que o nosso amor foi só um pedaço do bolo.E dentro em pouco, meu bem, eu já não estarei escrevendo sobre você no meu caderno, ou sentindo o seu vazio na minha mesa.
O Mesmo amor que arrancou você daqui, há de trazer novas embracações. Por hora, estou triste. Mas , de algum modo, sinto um desejo de me envolver de novo, e de lhe esquecer de novo, e de me vestir de verde novamente pra impressionar alguém. Quem será que virá me buscar dessa vez ? Quem irá novamente roubar meus suspiros, e quem me fará escrever freneticamente sobre bobagens vividas intensamente ? Agora, benzinho, eu tenho tanto desejo de viajar que o amor é meu ponto de partida.