domingo, 31 de outubro de 2010

A mesa virada serviu, por sorte, como esconderijo , pelo menos por aquela noite. As incontáveis batalhas haviam acabado com suas forças, mas teria agora tempo de reorganizar-se. Parecia ser a última, talvez a definitiva, precisava estar pronto. Certificou-se da munição que lhe restava e rapidamente olhou por cima de uma das gavetas embutidas na mesa para ter certeza de que o adversário ainda estava lá. Restavam-lhe uma caneta, para alívio, verde, algumas folhas de papel e muitos cadernos velhos. No canto, se esticasse um pouco a mão, poderia também alcançar alguns chocolates, canções ao pé do ouvido, flores arrancadas de residências desconhecidas, mãos apertadas no meio da noite, e um frasco de fidelidade intacto. Não tinha do que reclamar.
Demorou para decidir se esperaria o cair definitivo da madrugada ou começaria seus ataques desde então. Foi ai que lhe ocorreu. Lembrou-se da razão pela qual a guerra começara dessa vez. Se olhasse bem, veria que os poemas, as flores, a mesa, ele próprio, estavam ali, virados, por conta de um último ataque dos desamantes. Lhe disseram que era muito. Eram demais os poemas, era demais o perfume, era demais o cuidado. Entenderam que tratava-se de um mal,  um péssimo soldado, e lhe puseram para fora do exército do comum. Andava rápido demais. Desde então, depois desse erro, talvez fatal, tentara arrumar-se com suas próprias armas para sobreviver aos inúmeros confrontos com a realidade, essa implacável. 
Porque achou ser a hora certa ou porque, de fato, não sabia esperar, apontou suas bazucas de poesia em, sem mais, deu início aos ataques. E foi assim, havia balas de Drummond, granadas de Neruda, campos minados de Gil. Por muitas horas, trocaram diferenças: a realidade lhe mostrava com golpes cada vez mais duros que estava errado novamente, que deveria recuar, desistir. Ele, com o seu resistente colete de Utopia, confrontava qualquer verdade, qualquer certeza, com o argumento do sonho. Há quem diga, sem muita certeza, que foi uma das batalhas mais longas que já se viu. O ardor que o rapaz trazia nos olhos, misturando-se no ar com aquelas fagulhas de Quintana, convenceriam qualquer um de que estava disposto a vencer. Dizem que o som que saía da explosão das armas eram canções de Chico Buarque, todas de amor.
Aos poucos, a mesa foi desfazendo-se junto com o colete. Munido ainda de largas quantidades de sonho, sacou sua pistola de Vinícius, a que julgava mais potente, e sem tomar conhecimento de tudo o que era avesso, invadiu as trincheiras da realidade disposto a acabar com tudo o que a ela pertencesse. 
Dizem os menos sensatos que ele teria conseguido. Não viu que todo o exército já atirava doses muito largas de desencantos, não viu que a luta tornava-se cada vez mais desigual, via apenas que com a sua pistola, seria capaz de dominar o mundo. Teria, eu repito, derrotado todo um exército, talvez mais dez, se não tivesse encontrado aqueles olhos no meio da confusão. Ela estava vestida com a mesma farda da realidade, e usava relógios. Ele não. O seu tempo estava marcado nas batidas da mulher amada, nas canções de Chico que a vitrola não pulava, nos olhos vidrados  de quem acabou de se apaixonar. Sentiu um frio que não pôde suportar. Havia usado com ela todas as suas armas, as melhores, mas não conseguira convencê-la a embarcar. 
Rendeu-se ao que todos chamariam de sensatez e ingressou, sendo quem sabe o último, no exército da normalidade. É bem sabido que farda não lhe cabe bem, vez em quando é pego sem os sapatos, e nunca, nunca, bate continência para os comandantes do amor normal. Ainda alguns minutos antes de entregar-se suspirou como quem soubesse que teria sido imbatível.
Na ponta de algum por-do-sol, no meio de algum oceano, o amor morreu pela terceira ou quarta vez. Desde então, a noite que era clara nessa época, que era tempo de não dormir, veste-se de preto.  Os homens, desde então, vestem gravatas, comemoram aniversários, esperam as férias, escrevem tratados. As mulheres, cansadas de esperar, nem sabem mais. 
Há quem acredite que a primeira estrela que surge a cada noite, traz consigo o sonho de todos os amores que não foram. Há quem pense que o amor fez da lua sua base e que aquilo, de jeito nenhum, poderia ser um coelho. Dizem que passa as luas crescentes e minguantes preparando seus ataques, pra na lua cheia conquistar o mundo.