sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Começava a ver as coisas mais tortas do que costumava, achou que seria a hora de parar com aquilo tudo. Em nome das suas duas filhas, e da sua mulher falecida, apartir dalí não botaria mais um pingo de alcool na boca. E sabia que iria cumprir. Ele sempre cumpria. Achou que deveria aproveitar aquele último porre. As coisas quando sao últimas, tem um sabor especial. Pode até ser que mais lá na frente nao seja a melhor coisa a ser feita, mas por serem últimas são diferentes. Olharia pela ULTIMA vez o mundo sob aquela ótica. A ótica de um bêbado. Em geral, essa forma de ver a vida é descartada pelos não-bêbados.Mas ninguém pode negar: é uma outra forma de ver as coisas. E ele, que sempre andou tão insatisfeito com as coisas não-tortas do mundo real, arrumou nessa, uma maneira de escapar , ainda que temporariamente de toda essa falcatrua. Até por que, sempre lhe abateu a dúvida de como seria um mundo em que todas as pessoas andassem bêbadas. Já no final dos seus dias de alcoolismo, esteve certo de que não seria muito interessante. Nem todas as pessoas tem a capacidade de serem bêbados, assim como ele tinha. Em 20 anos de bar, nenhum espetáculo, nenhuma briga, duas ou três quedas no máximo, e muito silêncio e reflexão. Beber, para ele, era uma forma de nostalgia.
Mas enfim, aquela seria sua última vez. Passando por aquela tao significativa ultima vez, pensou em todas as outras as quais atravessara por toda a sua vida. E como conseguira até aqui fazer disso um pacto. Janete, foi seu último romance. Depois dela, nem mais uma olhadinha nas pernas cruzadas das moças da praça. Foi fiel até o dia em que a morte a levou. E mais, ainda era. Aquela briga com um rapaz colega de faculdade dela, foi a ultima cena de ciúmes. Ver ela entrando na universidade, foi a última insegurança que sentiria em relação ao amor dos dois. Sandra seria sua última filha. Rambo, o último filme de Holliwood. Aquele na formatura de sua filha, o último gole de coca cola. Ele era fiel às suas promessas de fim.
E agora mesmo, olhando e pensando em todas aquelas coisas, imaginando sua filha entrando na universidade, e se sentindo orgulhoso por nunca tê-la feito passar vergonha por causa da bebida, e agora quando a terceira idade lhe batia na porta, havia chegado sozinho, sem ajuda do dicionário, à certeza de que não deveria mais beber álcool, tinha em mente duas coisas: estaria bêbado o suficiente para mudar o modo de ver as coisas sempre que preciso. E a certeza de que vinho branco lhe botava comovido como o diabo.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

- Você sabe da tesourinha ?
E ela continuava falando. Eu que ja admitia o dom de nao ouvir essas falas, e responder àquela cacetada de perguntas que nunca chegariam a lugar nenhum, e que ela continuava achando que serviam para uma boa convivencia, insisti na pergunta.
- Você sabe da tesoura de unhas ?
E ela continuava falando. ME dei conta de que ela nao sabia da tesourinha e me coloquei a procurar. Na verdade ela nao sabia da tesoura, e nao sabia de muito mais coisas. Como quase ninguem sabe, mas me preocupava o fato de toda essa ignorancia ter sempre atravancado o meu caminho. E eu já contava nos dedos a chance de passar adiante dalí. E não que eu soubesse das coisas que ela nao sabia. Em muitas, nao sabiamos ambos. Mas há outras que devem ser entendidas, que devem ser buscadas e que devem ser respeitadas.
A tesourinha estava atrás do porta-retratos. Fiquei olhando, sem olhar, para ele e pensando na minha vida. Eu nunca saí por aí falando de liberdade desse tipo. Dessa liberdade de sair de casa. Essa liberdade que levou grandes amigos meus a entrarem na universidade em cursos que pura e simplesmente dão dinheiro. Eu não. Havia quem profetizasse para mim, uma morte por inanição. Mas eu pouco me importei durante todo esse tempo. Na verdade, eu sempre sustentei a crença de que eu seria capaz de criar um mundo no qual habitassem unicamente as pessoas convidadas por mim. VIm descobrindo que há pessoas para atravancarem o seu caminho.
Ia começando a cortar a unha quando passei a pensar em felicidade. Eu vinha de uma semana feliz. Chegar nesse mundo real, nessa coisa de sempre, me parecia uma contradição. A felicidade, deve mesmo ser uma coisa de momento. Isso que passa num vapt-vupt, e que chega na com um pouquinho mais de aviso. Então eu entendí que eu vivia alguns mundos. E esses mundos, sao criados nao por mim, mas pelas pessoas que permanecem neles. As pessoas, as sensações, as cores, a movimentação das coisas, a presença ou ausencia de determinados sentimentos. Nesse em que estou agora e escrevendo, a felicidade tem acesso restrito. Parece que nao gosta muito do lugar. No que eu estive a pouco, ela fica quase sempre. E ela fica por que ela está. E ela está por que nao depende do lugar, nem do humor desse ou daquele, disso ou daquilo, depende unicamente da presença do amor. Há de se amar alguma coisa pra ir ganahando a felicidade. Nesse meu mundo de agora há também menos amor.
Cortando a unha do dedão do pé, me lembrei das coisas que ela nao sabia. Ela nao sabia da felicidade, e muito menos do amor. Eu que tentava saber dessas coisas, estava certo de que nao sabia cortar minhas proprias unhas...