sábado, 29 de novembro de 2008

Terminou de empacotar o último disco e suspirou. Atirou na cama a última caixa e sentiu-se, de verdade, indo embora. Achou que deveria olhar bem para aquela cena antes de sair. Achou que devira olhar bem para sí mesmo antes de sair. E olhou. O armário já não tinha a sua cara. Já não tinha toda a emoção a qual tinha lhe dedicado. Nada mais de discos de vinil que nunca seriam escutados, nada mais de adesivos diferentes, nada mais de poesias secretas guardadas em caixas de sapato. Todas essas coisas, afinal, só tinham feito algum sentido duas vezes: no dia em que alí foram colocadas, e agora quando não estão mais lá. Mas era enfim o seu armário. E era uma das poucas coisas por alí que podia ter como sua. Além disso, suas idéias. Essas sim eram suas.
Olhando para sí, teve a noção de que levaria muito mais coisas do que havia colocado no armário na primeira vez em que o organizou. As coisas lá dentro e aqui fora, e dentro dele, haviam crescido e se multiplicado. Sentia-se maior do que quando começou o armário. Sentia-se tão maior, a ponto de não caber mais naquele armário. Precisava de novos armários pra se caber.
Sentou-se na cama para chorar. Era a primeira vez que fazia isso de propósito. Todas as outras vezes em que chorou, chorou por não caber mais naquele armário. E agora, vendo-o vazio, vendo-o pedir pra que um dia um pedaço seu volte a estar alí, ele perdoou o armário, que afinal, só fez o seu papel.
Olhando mais para dentro de sí, viu muitas coisas novas, realmente. Ainda sentia saudades de Maria Helena, mas era capaz de suportar a hora certa. Ela chegaria. Uma coisa não mudou, sentia ciúmes e contiuava a esconder. Talvez daqui a mais um tempo parasse de sentir. Ou de esconder. O fato é que por enquanto iria ficar mesmo por alí se roendo. Sorriu ao lembrar das insistentes perguntas de Maria Helena sobre os seus pensamentos. Sobre o seu silêncio. Era medo. Um medo, num misto quente de Insegurança e zelo, que resultava naquele ciúme quase incontrolável. Alguns amores aconteceram, alguns estavam acontecendo, mas gostava de apesar de tudo, amar Maria Helena. Por vezes se sentiu culpado por manter dois amores em seu peito, mas quase sempre preferiu culpar a ela, que teimava em ser amada tão grandemente.
Puxou o rabo do gato que dormia embaixo da cama pela última vez naquele quarto. Misturou lágrimas e risos quando constatou que incrivelmente, o gato não o havia mordido como de costume. Era como se ele também se despedisse.
As paredes, essas pareciam aliviadas. Não mais teriam que escutar horas e horas de desabafos, tampouco receber aqueles posters ridículos com frases ridículas de revolucionários e cantores , que no mais, sao todos ridículos. Ficou feliz por ter sido assim. Se tivesse uma máquina fotográfica, tiraria uma foto. Mas não tinha. Tinha os olhos e a memória. Guardaria aquele armário, dentro daquele quarto, dentro daquela casa, dentro daquele menino, do proprio jeito como estavam agora.
Saiu e fechou a porta. Ao mesmo tempo que se pudesse, levaria consigo, na sacola, o quarto e o armário, sentia-se animado pelos armários que viriam. Sentia também uma enorme curiosidade, e se pudesse perguntaria, pra saber como o armário que tinha sua cara, iria se comportar agora, com novas caras. Talvez abrigasse lençois ou toalhas de mesa, e se um dia se sentiu chateado pela bagunça, agora sentiria saudades de todas aquelas novidades. Ficou triste pelo armário. Mas pensando bem, o pobrezinho merecia um descanso. Pensou que talvez, guardar roupas de cama, significasse a aposentadoria para os armários. Riu-se.
Olhou através da porta e viu que ele e o quarto estavam meio vazios agora. No etanto, levavam um pouquinho um do outro. Escreveu dois bilhetes antes de sair. Um para o quarto, e outro desaforado para Maria Helena. Queria dizer a ela o quanto estava indignado por não terem se casdo. Mas talvez se casassem um dia. Ele a amava.
E foi pensando em Maria Helena, que ele foi saindo do quarto, da casa, de sí, e nem mesmo se deu conta de que começava a ser engolido pelo furacão que engole quem não tem um quarto. Nem se deu conta de que naquele momento, perdia um pouco da sua identidade. Perdia um pouco da sua cara. E perdia por que acabava de perder o seu armário e por que nunca houvera tido o amor de Maria Helena. Antes que fosse sugado, completamente, ergueu a cabeça e decidiu que daquele momento em diante, sairia em busca de um outro armário seu. Não esses armários a que todos procuram onde so cabe dinheiro. Procuaria um armário ao seu gosto. Onde coubessem ele e todo o seu amor por Maria Helena. E alí viveria até o dia em que morresse. Morresse de ciúmes.